sábado, 24 de abril de 2010

FÉLIX CARBAJAL

FÉLIX CARBAJAL


É uma figura curiosa. Extremamente curiosa - me disseram. “Você vai gostar dele. É poeta, também”.
Não dei importância ao fato como esperavam. Tenho conhecido muita gente extravagante. Neguinho Saci era uma dessas peças de museu. Quando o circo esteve na cidade, ele foi o mais aplaudido. Artes do diabo o moleque tinha. Ficávamos com os olhos acesos pregados na boca do picadeiro, vigiando a entrada do negrinho. Não prestávamos atenção sequer nos palhaços que fazia a alegria da garotada. Queríamos ver a beleza do salto mortal que ele dava de cima duma escada de teto, o corpo subindo, subindo, e quando menos se esperava, dava duas, três cambalhotas no ar, num salto mortal inimitável e caía de pé, sob os aplausos frenéticos da multidão. No dia que errou o salto, partiu o pescoço; Zacharias, com h, o homem corda. Não havia nó que ele não soltasse. Um dia amarraram-lhe os braços e pernas no ficus da praça, cadê que se soltou, nada. Dormiu a noite amarrado. Era um inverno rigoroso. Amanheceu enregelado, quase morre de frio. Tiveram de embebedá-lo de conhaque, no dia seguinte; nunca mais apareceu na cidade. O cigano das facas. Coisa de sobrenatural. Jamais pude entender como conseguia enfiar a faca no corpo até o cabo, o sangue escorria de verdade, chegava a respigar na gente. Nem era com ele. Metia a mão no bolso, sacava um trapo de pano encardido, enxugava o sangue. Aí corria um tacho de cobre. Quem não lhe atirasse dinheiro ficava marcado. Todo mundo atirava. Maria Maluca, dizem, fora uma grande cantora lírica. Viera clandestina num vagão de trem da Central do Brasil. Na primeira apresentação no banco da plataforma da Estação, cantou toda a ópera Aída, de Verdi. Uma tarde saiu correndo pelos trilhos a fora num agudo interminável. Perdeu-se na fumaça.
O nosso primeiro contato foi casual. Félix era uruguaio. O pai teria sido um músico de certa fama. Órfão de mãe. Morre o pai, ele vai para a Espanha estudar. Sevilha, Córdova, Granada, El Guadalquivir, “verde que te quiero verde”. Naquela noite los touros tinham sido imolados em praça pública. Cortaram los culhões. Um nojo. Fiquei com uma raiva filho-da-puta. A arte era sua exigência. Diziam, mas não realizavam.
Vendeu a mansão que o pai deixara. Todas as casas. Violino. 15 mil pesetas no bolso. Paris. Mulheres. Roma. Taiti. Aqui viveu Gauguin. Fruir a carne nativa na areia suja de tinta.
Félix era o mundo. Me conhecia. Te conhecia. Hemingway. Bandeira. Pignatari. Paulo Mendes Campos. “Um relógio de sol?” indaguei. “Sim, algo simples, rudimentar, cheirando o passado”. O cálculo geométrico estava pronto. A inscrição, em latim, na primeira folha de “Tartarin du Tarascon”.
De repente o rádio dá a notícia. Guimarães Rosa morreu. Félix retém a colher de pedreiro no assentamento do tijolo. “Pois construamos seu túmulo” e seus olhos eram uma cachoeira.
Na manhã seguinte, quando chego na praça, não encontro Félix. Apenas aquele estranho relógio de sol, marcando as horas de sua vida andarilha, nascido sobre o túmulo de Guimarães Rosa. Incompreendido. Odiado relógio de sol.
Encontro Félix no bar. Roga-me dinheiro. É inútil, Félix, você é filósofo, um louco para eles”. Penso: “O homem não é uma ilha; é todo um continente”. Seus olhos estão magoados, talvez viajando para algum país desconhecido e distante. Estranha natureza humana. Ele me senta na cadeira. “Deixe isso pra lá. Ouça Antônio Machado:

“Caminante, son tus huellas
el camino, y nada más;
caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Al andar se hace camino.
Y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante, no hay camino,
sino estelas en la mar”.

Não o encontrei mais. Resta, na praça, apenas, um relógio de sol que as picaretas um dia derrubarão para sempre.

Um comentário:

Cláudio Roberto disse...

Muito boa essa sua história.
Félix foi um grande homem e fez uma grande obra.
Gostaria de saber se tens fotos desse relógio de sol de Mangaratiba.
Estou reunindo material de sua obra no facebook: Felix Carbajal